segunda-feira, 26 de julho de 2010

Nordeste: invenções e clichês


Parece fácil falar sobre o Nordeste. Basta um álibi para o desfiar dos clichês e repetir à exaustão o que todo mundo pensa que sabe.

Vale tentar colocar algumas balizas nesta reflexão. Em primeiro lugar, há um abuso da ideia da invenção. Em determinados círculos intelectuais, o conceito se vulgarizou a partir de Eric Hobsbawm. Quando ele fala na “invenção das tradições”, fica fácil pegar carona e falar da invenção de tudo. Falar em cultura é falar em invenção. Desde o fogo, a roda, as inscrições rupestres, passando pela combustão do átomo, pelos “chips”, pelas vacinas, o homem não fez outra coisa senão inventar.

O que pouca gente diz é que esta invenção não se sustenta no vazio e precisa de um contexto para vicejar. Ou se articula a partir de um quadro favorável de expectativas, anseios e cobranças.

O Nordeste sempre existiu, mesmo que não tivesse esse nome, e fosse chamado de Norte. Existia um sentimento de pertença e uma raiz que pode ser buscada na oralidade. Talvez esteja aí um dos eixos da constituição da região.

Franklin Távora falava, no prefácio de O Cabeleira, no final do século XIX, de uma literatura do norte e de uma literatura do sul.

O que ele talvez sentisse como artista, e não quisesse dizer como cidadão, era que o Norte se esvaziava de importância econômica e perdia poder político. Estavam lançadas as bases de uma ruptura que chega ao cúmulo da idiotice com a ideia de um Nordeste independente.

O Nordeste foi inventado e nos inventou. Talvez se possa colocar como marco temporal da criação desta região rica, contraditória e problemática, a constituição da entidade de combate às secas, a partir de 1909, embrião do atual Dnocs.

Parafraseando José Saramago, pode-se pensar em uma jangada (e aqui cabe bem o termo) de pedra, não exatamente despregada do Brasil por não se sentir Brasil, mas por se sentir à deriva. O sentimento de pertença não conflita com o se sentir sem rumo. As idéias não seriam excludentes, mas superpostas.

Outra provocação é evidenciar a opção feita pela caricatura. O Nordeste vestiu a carapuça da crise e o uso do cachimbo deixou torta a boca e a mão estendida, sempre a pedir. Aceitou, sem maiores reclamações, o rótulo do atraso.

Convive-se com a idéia equivocada de que todos os coronéis são daqui. São esquecidas as vassouras, as capas pretas, as malas idem, além de outras mazelas clientelistas, assistencialistas ou paternalistas. Nossos coronéis não são melhores nem piores, apenas nunca estiveram e nem estão sozinhos na cena nacional.

A premissa da região problema vem se reforçando ao longo do tempo. E a desmontagem dos estereótipos não está incluída nas regras do jogo. Faz parte da lógica das ideologias aceitar os clichês sem discussão, como se fossem verdades inquestionáveis.

O reforço passou, inclusive, pelo romance social, com todas as virtudes que tenham tido Graciliano, Zé Lins, Rachel, José Américo e outros. Não se trata de negar a importância desta abordagem, mas de chamar a atenção para a exibição da chaga aberta da perna do mendigo, no meio da rua.

A Universidade de São Paulo ainda hoje não engole Gilberto Freyre e Cascudo não tem a grandeza de sua contribuição reconhecida.

É frequente o olhar para o passado com instrumentais teóricos e com um viés de hoje. Assim, ainda tem quem considere os beatos (Conselheiro, Zé Lourenço e tantos outros) como fanáticos. Muita gente diz rotula Padre Cícero de conservador, como se ele pudesse ter sido da teologia da libertação.

E tem a seca, sempre a seca que, de repente, como em um passe de mágica, sumiu do noticiário, quando não foi mais conveniente estimular o êxodo para os seringais da Amazônia, para as fábricas paulistas ou para a construção de Brasília. A seca de 1983 a 1987 foi considerada por Dom Aloísio Lorscheider, então cardeal arcebispo de Fortaleza, um genocídio, de acordo com matéria publicada pelo jornal francês Le Monde. E quem se ocupou da seca de 2010? Aliás, pela leitura dos jornais, não houve seca este ano.

Lampião passou a ser compreendido depois da pesquisa de Chandler ou de Hobsbawm (outra vez) ter escrito sobre “rebeldes primitivos”. Até então era facínora. Parte da intelectualidade torceu o nariz para Luiz Gonzaga por ser “de direita”.

Não é fácil escrever sobre o Nordeste, ainda que possa parecer, à primeira vista. Dizer o quê? O elogio à força da cultura é pouco ou pode ser um argumento falacioso, nestes tempos de linha de montagem, de produtos para as massas e de diluição como estratégia criativa.

A Bahia chacoalha seu axé como compensação por não ser mais a capital do Império. Pernambuco faz réquiem para o fogo morto dos seus engenhos. O Ceará teve no algodão um vislumbre de apogeu, até que apareceu um tal de bicudo e o sonho acabou.

Boa parte de nossas manifestações culturais não atrai as engrenagens da chamada Indústria Cultural. Estão catalogadas no que chamamos de “folclore”. A grandeza de parte de nossos artistas beira a indigência. Existirá algo mais abominável que o sotaque nordestino dos programas de tevê?

Chega de sermos pobres coitados. Não dependemos do que pensam de nós os que detêm o controle dos meios de comunicação. Sem nos fecharmos para o mundo, não podemos abrir mão da nossa dignidade. Não somos vítimas. O mundo não se acaba porque não somos “queridinhos” da mídia: abaixo a ideologia do sucesso. Os Irmãos Aniceto fazem uma música e uma dança que se nivela com o melhor da produção internacional. Espero que não queiram viver os quinze minutos de fama ao qual teriam direito.

O compromisso com o nosso tempo e com o mundo em que vivemos, vai além dos modismos, das delimitações geográficas, e dos rótulos. O Nordeste é nossa aldeia (apesar de quererem apagar nosso “DNA” indígena), mas somos cidadãos do mundo. Aliás, em tempos de globalização, a valorização do local é inevitável. A recusa à caricatura pode ser o começo de um processo de valorização do que fomos, do que somos e do que queremos ser.

Apesar da inegável importância do mangue-beat, nem tudo se resolve com a tradição plugada. O novo forró cearense é exemplo de uma aparente “fuga para a frente”, como diria outro teórico. Se o sertão nunca foi medieval, tampouco as parabólicas espetadas nas casas de taipa significam um novo tempo.

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Por Gilmar de Carvalho, professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará e autor de livros como Artes da Tradição e Tramas da Cultura.

Fonte: O Povo

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