segunda-feira, 28 de junho de 2010

Filosofia do corpo


Leandro Neves Cardim faz um percurso sobre o corpo na filosofia no livro Corpo, editado pela Globo

O corpo é um tema recorrente em diversas pesquisas, textos e ensaios. Na primeira década do século XXI, com várias crenças postas em xeque, o corpo parece ser uma estrutura mínima na qual ainda se poderia confiar. No entanto, essa estrutura mínima, o corpo, foi posta em crise durante todo o século XX, ao longo do qual ele foi torturado, fragmentado e, mais ainda, alterado. Do cubismo às cirurgias plásticas é possível compreender que a representação do corpo na imagem migrou para o próprio corpo. A pergunta que fica é a seguinte: qual crise de representação? Afinal, esticando o fio do corpo como auto-representação, surge no horizonte o legado dos estudos da fenomenologia, sobretudo com o filósofo francês Merleau-Ponty (1908-1961), que aponta para o corpo enquanto apresentação e imagem.

Para chegar à ambiguidade da experiência do corpo próprio em Merleau-Ponty, Leandro Neves Cardim fez um percurso diacrônico do pensamento (sobre o corpo) na filosofia, ou seja, o que se pensou conceitualmente sobre o corpo. Essa trajetória está impressa no livro Corpo, editado pela Globo, na coleção Filosofia Frente e Verso. O livro tem o mérito de fornecer uma introdução e um recorte sobre o tema na filosofia, mesmo lidando com a impossibilidade de se criar uma história do corpo na filosofia. O objetivo de Leandro Neves Cardim é acompanhar o aparecimento da noção de corpo no pensamento ocidental e despertar a curiosidade do leitor para as próprias fontes filosóficas.

Da filosofia antiga, Cardim apresenta a clássica divisão de corpo e alma, a partir de Platão e Aristóteles, e seu contexto tanto na literatura épica – como na Ilíada, de Homero – como na tragédia – com Antígona, de Sófocles. Em seguida, o salto para René Descartes (1596-1650), que em As paixões da alma, falará de uma pequena glândula, a pineal, onde a alma exerceria suas funções, e que o estudo dessa glândula nos permitiria entender a correspondência do movimento da alma para o corpo. Com tal tese, Descartes foi ridicularizado junto aos pensadores do seu tempo, dentre os quais estava Espinosa (1632-1677), que trata da questão em sua Ética. Para fechar a primeira parte do livro, Cardim apresenta o filósofo francês Maine de Biran (1766-1824), que colaborou para a questão do corpo com a noção de “eu”, ou ainda, do “sentimento íntimo”.

Immanuel Kant (1724 -1804) inicia a segunda parte do livro, com a visão do corpo e alma modificada em um “eu pensante”, que teria um sentido mais interno, a alma, e um objeto de sentido externo, o corpo. Enfim, com Edmund Husserl (1859-1938), o corpo terá a noção de carne evidentemente mais forte. Com a aparição de um “sujeito encarnado”, o corpo seria o lugar das sensações e emoções, como por exemplo, o tato: ao tocarmos um objeto somos tocados por ele.

Mais adiante, o corpo, para Friedrich Nietzsche (1844-1900), seria um sistema de forças sempre em relação com outras forças. Ele é de inteira importância para o filósofo alemão, segundo o qual pensa-se com o corpo inteiro. É nesse encadeamento que, na linha armada por Leandro Neves Cardim, surge a terceira parte do livro, dedicada integralmente a Merleau-Ponty.

No epílogo de Corpo, tem-se a contribuição dos estudos de Michel Foucault (1926-1984), que abrange desde as sociedades disciplinares à biopolítica, passando pelas distintas formas de punição do corpo (e da alma) bem como pelo uso dos prazeres e pela relação entre disciplina, controle e prazer. Em Gilles Deleuze e Félix Guattari, existe praticamente um verbete inadequado abordando a noção de “Corpo sem órgãos”, operação crítica dos filósofos a partir do escritor francês Antonin Artaud (1896-1948).

Corpo, de Leandro Neves Cardim, é uma abertura. Um movimento inicial para desnudar o corpo pelo pensamento. Mais uma contribuição para os estudos sobre o corpo que, paradoxalmente, está cada vez mais visível na produção de conhecimento e nas artes e, ao mesmo tempo, invisível nas múltiplas camadas da imagem publicitária que o naturaliza e neutraliza enquanto discurso e que instaura um excesso capaz de cegar sua percepção. Esse paradoxo não o isola em um ou outro pólo; afinal, esses sinais se entrecruzam e oscilam constantemente entre o visível e o invisível no mundo contemporâneo.

Serviço
Corpo, de Leando Neves Cardim - Coleção Filosofia Frente e Verso (Ed. Globo, 2009)
Preço médio: R$ 27.

Eduardo Jorge - Especial para O POVO 28/06/2010 02:00
Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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