quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Bia Bedran em prática e teoria


Flávio Paiva

Com equilíbrio entre prática e teoria a dissertação de mestrado da compositora, cantora e atriz Bia Bedran revela a importância da sua obra e o espaço de relevância que ocupa no cantar e no contar da arte para crianças no Brasil. O sugestivo título “Ancestralidade e contemporaneidade das narrativas orais: a arte de cantar e contar histórias” é tão atraente quanto o próprio texto. E o texto é tão leve e bom de ler quanto ouvir as composições e a literatura musicada de Bia. Os recursos da narrativa oral, da veia poética e literária e da iluminação artística transitam na seara acadêmica de modo inteligente e sensível, pelos mesmos motivos da obra: simples e profundo a um só tempo.

É difícil abordar convencionalmente o que se ama, falar do que se faz por inteiro, mas o método científico ajuda um pouco, favorece o distanciamento necessário ao diálogo com pensadores que passaram boa parte da vida refletindo e escrevendo sobre o tema em recorte. O esforço de Bia Bedran nesse sentido, com a orientação da doutora Martha D’Ângelo, resultou em uma dissertação muito rica de particularidades. O arquivo com o seu conteúdo acaba de ser tornado disponível pelo seguinte endereço da pós-graduação da Universidade Federal Fluminense: http://www.uff.br/cienciadaarte/dissertacoes_2010-1.html

Por anos e anos, nas últimas quatro décadas pelo menos, Bia Bedran carregou quase sozinha o piano da boa música infantil no Brasil. Fez isso mais com o coração e por respeito à infância do que por qualquer outra coisa. Tornou-se a principal referência alternativa aos lançamentos eminentemente comerciais de discos voltados para os “pequenos consumidores”. Salvo casos pontuais e esporádicos, pode-se dizer que apenas o grupo paulistano Palavra Cantada, criado em 1994, se desenvolveu de forma estruturada e contínua na criação de produtos musicais de qualidade poética para a meninada, embora com marcadas características paradidáticas.

Inspirada nas contações e nas cantigas da sua mãe Wanda, nas combinações de músicas com fábulas feitas pelo Braguinha (1907 – 2006) e na cultura popular, Bia passou ao largo das determinações do mercado, para ficar ao lado das crianças que conseguiram escapar dos monopólios consumistas impostos pelas gravadoras e pela grande mídia. A dissertação de Bia Bedran recorre ao mundo teórico para sintetizar essa prática bonita e íntegra. Ao tentar se compreender, a artista oferece mais do que uma linha de visão do seu trabalho; ela proporciona um entendimento do cantar e do contar, que vai além da criança, que chega ao lúdico como liga humana transetária.

O lúdico está na base da sociabilidade instintiva, está na essência humana mais primitiva. Ele vem antes da infância, antes do pensamento lógico e das formulações científicas. Foi graças ao lúdico que a humanidade tomou a consciência da imaginação e se capacitou para a descoberta da infância. Costumo dizer que nessa questão o adulto nasceu primeiro. Sherazade, Marco Polo e Américo Vespúcio que não me deixam mentir. É no jogo que se formam a personalidade individual e coletiva, de onde surgem e se desenvolvem os ciclos civilizatórios. Em momentos de grandes transformações de significados, como o que estamos vivendo, o desgaste da credulidade tende a silenciar o lúdico e a embrutecer a vida em sociedade.

O que me agrada em trabalhos como o da Bia Bedran é o aspecto do devaneio, como estado sonhador, que aparece permanentemente na sua remodelagem do real e na busca do intuito da experiência, construída pela integração dos sentidos no jogo da música e da literatura, sorvidas da narrativa oral. Na dinâmica do ler e do brincar, ela faz educação com cultura, ou seja, educa para o imaginar, o que é a melhor maneira de contribuir efetivamente para a construção da consciência. Em “Ancestralidade e contemporaneidade das narrativas orais: a arte de cantar e contar histórias” ela abre as janelas da sua casa para deixar sair a luz que acumulou em sua bateria de fabulações regionais e universais, por meio de vivências em praças e quintais.

Depois dos capítulos com as exposições metodológicas e conceituais da ambientação acadêmica, Bia Bedran repassa ciclo por ciclo todo o seu aprendizado, sua experienciação, seu sentir, seu fazer, suas buscas, seus encantos. Reserva uma parte especial para a publicação do depoimento que colheu do compositor Pedro Menezes, baiano radicado no Rio de Janeiro, que um dia, em 1987, foi à então TV Educativa, onde a Bia fazia o programa “Canta-Conto”, para presenteá-la com o “Samba do Tatê Calanquê”, que foi cuidadosamente adaptado pela educadora e virou uma das mais ricas obras brasileiras de contação musicada. A máxima do Seu Pedro é que suas histórias são reais, mas foi ele quem as inventou.

Assim como no depoimento do Seu Pedro, em sua dissertação de mestrado Bia assemelha-se em seus relatos e na sua história. Ao falar da arte narrativa, da função histórico-cultural do narrador e da linguagem artística dedicada à infância, a autora do clássico “Ciranda do Anel” (“Perdi o meu anel no mar / não pude mais encontrar / E o mar me trouxe a concha de presente pra me dar”) zela pelo reencantamento do mundo em palavras que se cantam e em palavras que se falam. Trata-se, portanto, de uma produção acadêmica, tecida em fios autobiográficos, com partituras e contações, na qual a autora fala de si porque o si está intenso e consistentemente imbricado em seu objeto de estudo.

Bia Bedran faz uso de sua experiência direta para dar propriedade à afirmação de que a arte de narrar está inseparavelmente ligada à própria história do mundo. Recorre ao que fez e faz de teatro, rádio, tevê, música e arte-educação, para respaldar sua crença de que o mais importante de tudo isso é que a narrativa esteja sempre dirigida ao olhar do outro. Bia acha imprescindível que se contem histórias hoje em dia: “Quando ela se dá, seja num contexto pedagógico, numa roda informal de contos ou mesmo no contexto do que chamamos de indústria do espetáculo, o maravilhoso se instala” (p. 120). Para a educadora, quando uma criança escuta uma história, essa história só tem sentido se puder continuar habitando em sua imaginação criadora.

De cada experiência analisada em sua dissertação, Bia Bedran deixa várias pistas a outros pesquisadores que poderão jogar novos olhares sobre os seus fazeres e feitos. Da menina de Niterói, que musicou poemas de Cecília Meireles (1901 – 1964), à educadora apaixonada, que fez um recorte da própria história para se entender à luz da teoria, temos aí uma agradável análise que vai das relações entre memória e reconstrução do passado à literatura oral, contos populares e a escrita, passando pelo narrador, pelo ouvinte, pelo devaneio e pela imaginação poética.

Assim, termino o meu comentário pelo ponto que Bia Bedran começa a sua dissertação; pela sensação envolvente de que uma história está sempre dentro de outra, por isso o fim de umas é muitas vezes o começo de outras. Feliz de quem conta as histórias que não acabam nunca, como o menino que foi poupado pelo rei por tê-lo ajudado a olhar para um ponto bem distante, como se estivesse vendo os patos que demoravam, demoravam, demoravam, para chegar do outro lado do rio. “Deixe os patos passarem...”. Está na obra da Bia, a nos ensinar que mais do que nunca, em casos de tragédias, salvemos primeiro as crianças, as mulheres grávidas e todos os que estiverem prenhes de imaginação.

(Diário do Nordeste)

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