terça-feira, 3 de agosto de 2010

Políticas culturais e distribuição de renda


Giuseppe Cocco

Há pouco, na saída de um evento no Rio de Janeiro, o ministro da Cultura, Juca Ferreira, me disse, "escandalizado": "Você falou que o Bolsa Família foi a maior política cultural do governo Lula!". Com isso, ele continuou, "você rebaixou tudo ao mero economicismo".

Com efeito, fiz essa afirmação em um seminário de estudos culturais.

A noção de cultura que eu estava usando era aquela que emerge no relato de um etnógrafo sobre seus primeiros contatos com tribo indígena: "A maneira como eu não entendia (os indígenas) era diferente de como eles não me entendiam".

A cultura de que estamos falando é a própria relação social e sua dinâmica criativa e democrática: a alteridade e a diferença. Acontece que o capitalismo das redes e do conhecimento investe a cultura como relação, formas de vida.

A cultura é o plano de produção do valor: "world making", dizem até os economistas. Uma produção de "mundos" que vai além da indústria cultural, embora dela dependa toda a produção, inclusive aquela do chão de fábrica.

Produção de formas de vida a partir de formas de vida: tempo de vida e tempo de trabalho se misturam. Assim, o capitalismo contemporâneo mobiliza o trabalho diretamente na sociedade e, ao mesmo tempo, o separa da relação (salarial) de emprego; o trabalho se torna prestação de serviço.

Dessa maneira, o capitalismo inclui os excluídos (os pobres) enquanto tais (pobres): incluídos na produção e excluídos dos direitos.

A cultura se encontra duplamente no cerne desse deslocamento: quando é a vida como um todo que é investida, a determinação dos preços se torna arbitrária, e só a cultura pode determinar novos critérios de valor: quanto vale um "pulso" de uma comunicação feita por telefone móvel?

O que determina o preço dos bens culturais que já podem ser reproduzidos a custo zero? Onde está a riqueza, quando o consumo acrescenta valor aos bens de conhecimento? O que o capital captura são mesmo nossos excedentes de vida (nossa cultura).

O debate cruzado sobre (in)sustentabilidade dos Pontos de Cultura e o "assistencialismo" do Bolsa Família pode, enfim, ser radicalmente invertido. Diz-se que só o mercado poderia tornar sustentáveis os Pontos de Cultura.

Da mesma maneira, diz-se que só a entrado no mercado de trabalho (a "porta de saída") mostraria a eficácia do Bolsa Família para os pobres. Pelo contrário, precisamos pensar para além do mercado e do capital: sair do Bolsa Família significa entrar nas políticas dos pontos (de cultura e de trabalho), ao passo que sair dos pontos significa entrar na distribuição de renda.

A distribuição de renda aos mais pobres deve ser reconhecida como terreno de mobilização produtiva e cultural que vai muito além do combate darwinista à pobreza.

O reconhecimento das dimensões produtivas e criativas dos movimentos culturais vai muito além de uma política cultural.

Assim, podemos repetir: o Bolsa Família é a maior política cultural do governo Lula, e os Pontos de Cultura são a melhor distribuição de renda deste governo.

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GIUSEPPE COCCO, cientista político, doutor em história social pela Universidade de Paris, é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor, entre outras obras, de "MundoBraz: O Devir Brasil do Mundo e o Devir Mundo do Brasil".

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