domingo, 5 de dezembro de 2010

Indústria cultural sem mitos



A chamada indústria criativa vai muito além da visão frankfutiana de indústria cultural. A proposta, criada pelos australianos, sugere a valorização comercial de variáveis muitas vezes passam despercebidas no mundo dos negócios, como o talento estético, a criatividade e a sustentabilidade.

O conceito de economia criativa foi cunhado na Austrália, utilizado inicialmente pelo então primeiro ministro, Paul Keating, na apresentação do relatório Creative Nation, em 1994. Para ele, a Austrália tinha grande potencial para o desenvolvimento de produtos relativos ao campo simbólico, diferentes dos convencionais. A Austrália deveria se tornar uma nação criativa. Quase 20 anos depois, a vontade de Keating, de fato, vem sendo cumprida. Através da sólida parceria entre empresários, universidade e governo, o país é hoje uma referência para a Indústria Criativa no mundo.

Mas a que se refere o termo? Indústria criativa designa um novo modelo de negócio, relacionado sobretudo às práticas da sociedade pós-moderna e a conceitos como sustentabilidade. "O modelo de economia fordista é voltado para o utilitário, os carros eram feitos apenas para o transporte. Quando falo em economia criativa, me refiro ao design do carro, à criatividade, ao intangível", exemplifica Cláudia Leitão, professora de pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e coordenadora do Grupo de Políticas Públicas e Indústrias Criativas.Segundo ela, a ideia de economia criativa está relacionada à forma como a sociedade se relaciona entre si e com o mundo do trabalho.

O homem pós-moderno se divide em comunidades, que se instituem através do encontro de afinidades simbólicas. Assim, os produtos não são mais apenas dotados de uma função, mas de características que os identificam a grupos, os inserem neles. "Passada a fase industrial, o mundo está buscando um novo modelo", ressalta Cláudia. A pesquisadora nos dá o exemplo do lançamento do automóvel Twingo, da Renault. Lançado em 1993 na Europa, o modelo - considerado o primeiro "carro design" do mundo - tinha por slogan a frase: "Você tem uma vida que combina com o carro". "O veículo não se adaptada à sua necessidade, mas você precisava combinar com ele, ter elementos comuns que o levasse a adquiri-lo, isso demonstra uma mudança de paradigma", comenta.

O conceito deve ser diferenciado, contudo, do de Indústria Cultural, cunhado pela Escola de Frankfurt, e estigmatizado como um modelo extremista e quase apocalíptico. Para os estudiosos, Indústria Cultural não é sinônimo de Indústria Criativa, mas está inserida nela. Além dos produtos artísticos, somam-se serviços da gastronomia, do design de moda, da arquitetura, dos games e de tantas outras áreas, poucos ou nada inseridas nos debates convencionais acerca de políticas culturais.

Na Austrália, a proposta de desenvolvimento de uma comunidade de negócios voltada para o novo setor saiu do papel, apresentando, na prática, uma revolução industrial alternativa. Há mais de dez anos, na cidade de Brisbane, capital do estado de Queensland, universidade e prefeitura se uniram para a construção de um bairro criativo, com domicílios, escolas, pequenos negócios e indústrias do gênero. "O modelo de gestão é muito interessante. Ninguém trabalha isolado: a universidade não faz pesquisas intramuros, o empresariado investe no setor e o governo não faz o que quer. Parceria é prioridade e, apesar dos conglomerados e das grandes empresas, lá se trabalha para os pequenos", analisa.

Brasil

Segundo os membros do grupo de pesquisa, o Brasil ainda está "na antessala da discussão", muito atrasado nos estudos sobre o novo modelo, uma contradição dado o enorme potencial nacional para o ramo. Os maiores obstáculos identificados dizem respeito ao escoamento dos produtos culturais: como fazer com que encontrem seus consumidores, gerando emprego e renda aos industriais e ao trabalhadores. "Estatísticas recentes do IBGE identificaram, por exemplo, o bordado está presente em todo o país. Aqui se borda do Oiapoque ao Chuí, mas quantos brasileiros sustentam suas famílias com esse ofício? Onde estão as linhas de crédito, as contrapartidas?", questiona Cláudia. Para ela, questionamentos como esse revelam a importância de se pensar políticas públicas específicas. "No Brasil todo mundo quer fazer concurso público, porque almeja estabilidade, mas esse não é o caminho, a máquina estatal não pode agregar a todos. É preciso investir no desenvolvimento de pequenos negócios sólidos, estáveis, e aproveitar o espírito empreendedor do brasileiro", alerta a professora.

Para os pesquisadores, é preciso, a priori, ressaltar dois aspectos: primeiro que as indústrias criativas vem para somar às tradicionais, não para substitui-las. Segundo, que é necessário conscientizar a cadeia produtiva, a classe artística e todos os profissionais que constituem esse núcleo criativo da importância de um trabalho "desideologizado". "A cultura pode e deve empregar pessoas, alimentar pessoas. Se nós temos uma imensa diversidade criativa, porque ela não pode se reverter em trabalho? Um artista plástico, por exemplo, pode vender suas obras, pode trabalhar com cenografia, com design, tudo está interligado", defende a pesquisadora.

MAYARA DE ARAÚJO
(DN – Especial para o Caderno 3)

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