sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Velhos tempos do futuro



Amanhece, e eu de novo à janela.
O céu continua azul;
o sol, deslumbrante, ilustra o nascente;
o mundo tem nova data marcada para acabar: 2012.

Passam os bêbados de volta da noitada,
patinando na lama dos esgotos da rua,
tropeçando em latas de cerveja, copos plásticos,
aspirando poeira, vômito, enxofre...
detritos do homem descartável
em festa de reveillon.
Ainda sobre a calçada,
toda a vizinhança em sacos de lixo
de um ontem tão distante...

Zé Porfírio ainda vive, servindo raro leite, na sua velha carrocinha -
mas já não lhe sou freguês:
hoje bebo pó sintético de cereal transgênico,
dada a intolerância à lactose;
o jegue Stalone não teve a mesma sorte: foi atropelado por um caminhão,
não sem antes ter matado minha muda de palmeira,
e em seu lugar plantei um pé de Nim Indiano.
Totó-da-Bodega faliu!
Aí se aposentou e mudou-se para a capital.
Agora passo o cartão no supermercado da cidade,
E sigo pendurando faturas aos fins dos meses...
A casa vizinha virou uma lan house, um cyber sem café, sei lá o que mais...
os sons sintetizados de supercarros de formula 1, nos games,
redundam em meus tímpanos...
Morro de saudades daquele cheiro de CO2 colorido de cinzas, que enevoava toda a rua – Não desse gás catalisado, incolor, insípido e inodoro,
que todos devoram sem tapar o nariz

e nos dilacera oculto os brônquios -
e do barulho cansado da velha Brasília vermelha,
há dez anos vendida no quilo para o ferro-velho...
A banda militar, ao longe, estranhamente,
ainda toca os velhos refrões,
ensaia as “antigas lições”,
de coturnos em teimosia com o asfalto,
enquanto jovens praças
rondam minha rua em modernas volantes.

Não há robô algum a recolher dejetos,
nem naus espaciais zanzando em meu beco.
Nem mesmo o carro-pipa que abastecia os baldes nos socorre,
pois se encontra no prego no quilômetro 15 da rodovia,
com o diferencial quebrado
e não se fabricam mais peças para sua manutenção...
Aí bebo água tônica comprada a preço de prata
e me banho no canal,
que um dia já foi um rio com nome indígena,
cuja pronúncia me foge à memória...

É 2011, como se fosse ontem...
um ontem tão distante
que insiste em não desaparecer,
com todos os seus resquícios
da “parte rudimentar” da história humana...

É 2011, igualzinho ao ontem,
o ontem tão distante
que não desapareceu,
com sua pobreza, seus males e fracassos...

É 2011, o mesmo que ontem,
que tanto mais mude, tanto mais cresça, tanto mais se modernize,
tão mais velho fica o ontem,
assim tão distante e tão presente.
E eu que tanto já ralhei, gritei, indignei...
continuo a ter amigdalite na garganta operada;
tempero de veneno o repolho, prevenindo a teníase;
respiro caltin para não morrer de dengue;
tomo resignado meus coquetéis de pílulas diários,
um para cada mal,
e vou ao templo todos os dias
louvar ao criador
pela graça de ver a aurora do novo ano,
que me nasce à minha imagem:
enrugado, esclerosado, demente, insano...

Elias de França
Crateús, Ce.

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