domingo, 23 de janeiro de 2011

João das ruas, alma do Rio

Carioca, mulato, gordo, de origem pobre, homossexual assumido e "perambulador" irremediável. Esse sujeito, que bem poderia ser tomado por um reles vagabundo boêmio, transformou o jornalismo, fundando uma revolução atualíssima, criando - sem perceber - as bases do que hoje se entende por jornalismo literário. Como fez isso? Simples: essencialmente, crendo que as ruas possuíam almas. Nascido há 130 anos, este era Paulo Barreto, mais conhecido pelos cafés parisienses e pelos botecos da esquina como João do Rio.

A partir do registro sensível dos seus famosos passeios, cujo foco não eram os destinos, mas a observância da cidade, João do Rio permitiu que seus leitores testemunhassem sua sina em redescobrir os sujeitos e as geografias do Rio de Janeiro.

O flâneur tomava o bonde e dali subia as favelas, que muitos juravam não existir no inicio do século XX, bem como as casas de ópio, às quais também visitara. Enveredava-se pelo mistério dos cultos religiosos, conhecendo os ritos e as comunidades vindas da África. Igualmente, pôs-se tambem entre os intelectuais, conhecendo-lhes os hábitos, os metiês.

Com a simplicidade dos pés na rua, o carioca Paulo Barreto rompeu as paredes impessoais das redações, mergulhando na dinâmica urbana, deixando-se apaixonar por ela. 

Nascimento

O rebento nasceu em agosto de 1881, no coração de um Rio de Janeiro que mais lembrava as imagens do romance "O Cortiço", de Aluízio Azevedo. No centro, na antiga rua do Hospício, hoje rua Buenos Aires, morava o casal Alfredo Coelho Barreto, um professor de matemática positivista, e Florência dos Santos Barreto, sua ex-aluna, a quem pedira em casamento aos 15 anos de idade.

Durante a infância de Paulo, o Rio fervilhava com a campanha antiescravocrata. Registros confirmam que a família Barreto estivera bastante envolvida com o clima libertário de 1888. Segundo as pesquisas da biografia "João do Rio: paixão, vida e obra", do jornalista João Carlos Rodrigues, recém-lançada pelo selo editorial Civilização Brasileira, a avó de Paulo Barreto "gastava até o que não tinha para alforriar escravos alheios".

O menino estudou no Colégio São Bento, mas apenas as lições português. A matemática foi aprendida com seu pai. Ainda no São Bento, desafiou-se a participar do jornal da escola, mas envergonhou-se do texto posteriormente. A vida nos jornais começou aos 18 anos. Pisou nas redações e ali fincou os pés, as mãos, o coração.

Escrita

Ao contrário de outros intelectuais contemporâneos a ele, que se usavam das redações como meio de vida e forma de obter maior contato com os leitores, Paulo Barreto escrevia para o jornal e pelo jornal, não apenas por ofício.

Começou escrevendo em "A Tribuna", jornal de Alcindo Guanabara. Quase 15 dias depois e já tinha uma colaboração regular no "A cidade do Rio". Não demorou para que saltasse de jornal em jornal, escrevendo em "O Paiz", "O Dia", "Correio Mercantil", "O Tagarela" e "O Coió". Cerca de quatro anos depois do início de sua carreira como jornalista, foi indicado por Nilo Peçanha para a "Gazeta de Notícias", redação em que permaneceria por dez anos.

E foi no "Gazeta", em 26 de novembro de 1904, que nasceu mais um de seus pseudônimos, desta vez um muito diferente, pois que engoliria seu nome de batismo para sempre: João do Rio. Sempre muito influenciado pelas produções francesas, supõe-se que o codinome tenha surgido do pseudônimo de Napoleon-Adrian Marx, jornalista do "Le figaro": Jean de Paris. E, como escreveu seu biógrafo: "De Jean de Paris para João do Rio foi um pulo".

Antes mesmo de personalizar-se João do Rio, exatos oito meses antes, Paulo Barreto deu início a uma série de reportagens que, de fato, marcariam sua vida: "As religiões do Rio". Esta foi a primeira publicação sobre candomblé na imprensa brasileira sem caráter pejorativo ou em tom de condenação. Paulo Barreto visitou as comunidades africanas, compreendeu e registrou suas culturas sem julgamento. Estudo semelhante ao das matérias de João, inspiradas na produção francesa "Les petites réligions de Paris", de Jules Bois, só foi produzido quase 400 anos depois, por Nina Rodrigues.

Frustrações

Anos depois, o João das religiões do Rio mete-se entre os intelectuais para escrever "O Momento Literário". Entre eles, residem os principais episódios de decepções e intrigas presentes na vida de Paulo Barreto. O jornalista só é eleito para a Academia Brasileira de Letras após sua terceira tentativa, tendo sido sumariamente rejeitado nas outras ocasiões. Tal fora sua rixa com os acadêmicos que, quando de sua morte, o biógrafo João Carlos Rodrigues narra, sobre a escolha do local do velório: "Aos soluços, Florência Barreto só disse uma frase, antes de desmaiar nos braços da criada: na Academia, não".

Em 1920, Paulo Barreto funda o jornal "A Pátria", em um momento da vida em que o revés lhe batia à porta e a elite, que antes fazia questão de aparecer em sua coluna, já desejava arduamente o contrário. O periódico fora fundado sobretudo para defender os direitos dos pescadores portugueses que abasteciam o Rio de Janeiro. A insistência em defender a colônia portuguesa, além de sua já suspeitada homossexualidade, atraíam muitos inimigos ao escritor, capazes inclusive de ofensas físicas à pessoa de João.

Fim da vida

Um ano depois de fundado seu próprio jornal, João vivia internamente a melancolia de já não ser mais o mesmo. Naquele 23 de julho, estava mais cansado que o costumeiro. Na caminhada matinal, perdera o fôlego; na hora do almoço, a fome; no trabalho, a disposição; e no regresso para a casa, perdera a vida.

Voltava de táxi para a casa da mãe quando foi acometido por uma forte dor no peito. Ao motorista, conseguiu apenas suplicar que lhe trouxesse água. O italiano, Alberto Cestari, até apressou-se em atender o pedido, parando o carro no meio do trânsito, causando engarrafamento. Mas era tarde.

"O gordo passageiro estava morto no banco de trás, com a expressão contorcida dos que enfrentam a morte de frente. Só então, pela reação das pessoas, o italiano veio a saber de quem se tratava:

- É o Paulo Barreto - gritou uma crioula.

- João do rio morreu!"

O trecho, descrito com maestria por João Carlos Rodrigues, é registrado pelos jornais da época. A manchete de "A Pátria" faz agora parte da história do Rio de Janeiro, da história brasileira. Cem mil pessoas: de cartomantes a escritores, de sambistas a acadêmicos, de homossexuais a homofóbicos, estavam todos lá. Cerca de 110 automóveis e mais dois carros de bombeiros foram destacados tão apenas para as coroas, que chegavam de todos os cantos do Brasil e de Portugal. 

E o povo do Rio perdia um amigo; Portugal dava adeus a um defensor; o jornalismo brasileiro enterrava um gênio, e até os inimigos sabiam que se despediam de um dos mais nobres rivais. Mas quem chorou àquele fatídico dia, quem se lamentou, coroando o caixão de João com silêncio, foram as ruas. Elas perdiam - cedo, muito cedo - parte de sua alma encantadora.

Mayara de Araújo
Repórter / DN

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