sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Serenata para Maria Elena Walsh


No dia em que Maria Elena Walsh morreu, olhei para o céu de Buenos Aires e ele estava bem azul. Azul celeste. Foi no dia 10 que passou. Da sua obra de poeta, compositora e cantora para adultos e crianças eu tinha apenas duas referências: as canções gravadas por Mercedes Sosa no elepê de capa azul, intitulado “Serenata para la tierra de uno” (1979) e a música do filme “A tartaruga Manuelita” (1999), animação do diretor espanhol-argentino Manuel García-Ferré.

Em “Serenata para la tierra de uno”, Maria Elena expressa o sentimento de que todos temos um lugar com o qual compartilhamos o idioma da infância; um lugar que mesmo nos fazendo sofrer é duro de ser deixado para trás; um lugar do qual queremos estar perto nem que seja para odiar aqueles que o maltratam.

Com a personagem Manuelita, a escritora confirma esse sentimento, à medida que a charmosa e carismática tartaruga, cansada do mundo em que vive, foge da Argentina para virar celebridade na França, mas ao ser encontrada pelos amigos de infância, deixa o sucesso parisiense de lado e volta para casa.

Por essas duas janelas procurei entender o azul celeste da bandeira que veste o coração de Maria Elena – e de Manuelita, esta na condição de representação do si da sua criadora. O que olhar, quando o que se tem pela frente é a trajetória de uma artista que encheu uma nação de música e poesia?

Essa luz azulada, essa alma infantil nostálgica e rebelde, traduzem a cultura argentina em boa parte também embalada por ela. Maria Elena Walsh (1930 – 2011) é uma referência artistica e social tecida geração por geração pelas famílias e pelas escolas na memória coletiva do seu país.

Filha de um contador inglês que trabalhava na rede ferroviária e de uma descendente de espanhóis, foi incentivada pelos pais a gostar de escrever e de cantar. Com 17 anos lançou seu primeiro livro de poesias (“Otoño Imperdonable”) e passou a conviver com personalidades da literatura, a exemplo de Jorge Luís Borges, com quem costumava sair para tomar chá.

Em passagem pela Argentina no ano de 1948 o poeta espanhol Juan Ramón Jiménez convidou-a a ir com ele aos Estados Unidos, onde Maria Elena aproximou-se de Ezra Pound e de outros grandes nome da literatura. Retornou em 1956, no primeiro momento peronista e, como a tartaruga Manuelita decidiu auto-exilar-se em Paris.

Na capital francesa, ela, juntamente com a também multiartista Leda Valladares, começou a fazer apresentações de vidalas, zambas, cuecas, bagualas e carnavalitos em bares e cafés. Gravaram vários discos com o cancioneiro da tradição oral do norte argentino, músicas andinas, canções de Athaualpa Yupanqui e música popular espanhola.

O despertar para a temática infantil ocorreu no início da década de 1960, com a publicação do livro “Tutu Marambá”, inspirado no lendário personagem brasileiro e dos discos “Canciones para mirar”, “Canciones para mi” e tantos outros, com gravações de qualidade, respeitando a criança.

Ao compor e cantar músicas plenas de sentimento sinceros e profundos, sua obra ganhou muitas reedições. A concepção de Maria Elena com relação a aplicação da arte na educação me parece semelhante a da Bia Bedran, no que diz respeito à necessidade de uma educação mais estética, capaz de fazer conexões pelo inconsciente.

Do mesmo modo que Monteiro Lobato – que se aborreceu com os adultos e passou a escrever para crianças – Maria Elena estava com fastio de círculos literários e tinha resolvido dedicar-se às composições infantis que viriam a consagrá-la. Escreveu cerca de 40 livros de poemas, canções, contos, novelas e peças de teatro, sendo “Manuelita, donde vas?” (1997), o último que publicou para esse público com textos originais.

Ao olhar pelas janelas da “Serenata para la tierra de uno” e de “Manuelita”, que primeiro se abriram para mim no contato com a paisagem de Maria Elena Walsh, vi muitas outras virtudes e realizações no seu azul celeste. Tanto quanto fiquei impressionado com as maravilhas que ela dedicou à infância, encantei-me com a indignação que ela tinha com relação a tudo o que feria a dignidade humana.

Maria Elena utilizou-se do prestígio que conquistou para interferir nas questões sociais e políticas do seu país. Fez isso com admirável pensamento independente, contrariando diferentes vertentes políticas. Pronunciou-se favorável ao aborto, contra a pena de morte, sobre o papel dos intelectuais, a desigualdade de gênero, as opiniões por conveniência, os modismos culturais e fez coro, ao lado de escritores como Ernesto Sabato, na busca dos desaparecidos pela ditadura.

Em pleno regime militar, desafiou os censores no artigo “Desventuras no país jardim de infância”, publicado em 16/08/1979, no suplemento “Cultura y Nación”, do jornal “Clarín”, afirmando-se como uma autora que olhava com amor a realidade da argentina, por mais suja que ela estivesse. Por consequinte, não aceitava aquela situação em que não se podia manifestar o pensamento: “A maioria dos autores somos moralistas. Queremos – devemos – denunciar para sanar, informar para corrigir, saber para transmitir, analisar para optar”.

Na retomada do processo democrático (1984) apoiou o presidente Raúl Alfonsín. Evitou assumir cargos públicos, mas aceitou integrar o Conselho para a Consolidação da Democracia. Apostou na democracia até ser duramente atacada por tradicionais admiradores, que reagiram ao seu artigo “La carpa también debe tomarse vacaciones”, publicado no jornal “La Nación”, de 21/12/1997, no qual qualificava de usurpadora do espaço público uma “interminável” manifestação de professores. Optou pelo silêncio. No entanto, milhares de fãs estiveram em seu velório, inclusive a presidenta Cristina Kirschner.

Maria Elena já estava mais recatada em decorrência de um câncer ósseo, diagnósticado em 1981 e que causou-lhe a morte 30 anos depois. Por todo esse período ela contou com a cumplicidade de Sara Facio, fotógrafa conhecida por retatar destacados escritores, de Julio Cortázar a Mario Vargas Llosa. Sara fez a biografia fotográfica de Maria Elena, na qual pôs o título: “Retratos de una artista libre” (1999).

Esse gesto de atenção e carinho foi retribuido com uma declaração de amor a Sara, feita no livro “Fantasmas en el Parque” (2008), no qual evoca amigos, mestres e amantes que com ela passearam pela vida, em uma relação que vai de Juan Ramón Jiménez a Silvina Ocampo. Uma publicação bem diferente de “Las cuerdas vivas de América” (2002), na qual Maria Elena rumina uma irritada contestação contra a compositora chilena Violeta Parra, que a chamou de burguesa, durante um encontro na década de 1950, em Paris.

Ainda bem que nas janelas da “Serenata para la tierra de uno” e de “Manuelita” encontrei fel e mel. Isso prova que Maria Elena Walsh realmente existiu. Não fosse assim, ela apenas teria andado pelas ruas, olhando para as vitrines, mas sem prazer; destino negado pelo ursinho de pelúcia, vestido em pijama de macacão, que ela criou para a canção “Marcha de Osías”, um dos seus clássicos que chegam para mim e para meus filhos em novas janelas de azul celeste.

O urso de brinquedo da canção de Maria Elena quer um bazar que venda coisas que no fundo no fundo todo mundo gostaria de comprar: relógios que tenham tempo para brincar, um rio com muitos peixes, jardins sem vigilantes e sem ladrões, histórias contadas pelas avós, uma bola que faça gol, um chapéu cheio de coelhos para fazer mágica, tudo o que os espelhos guardam, um pouco de conversa para quando estiver sozinho e um céu bem azul. Isso mesmo, azul celeste.

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