quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Diferenças bem longe de casa


João nasceu dos amores da mãe com o pai, dos laços avós e amantes, dentro da casa dos Có, pelas bênçãos da aldeia e dos espíritos, inscrito à geografia africana, abraçado pelos amigos queridos. É guineense e reconhece as arestas da condição. Como imigrante em Fortaleza, o palestrante africanista João Paulo Có delata sutilezas estrangeiras ininteligíveis e apresenta ao O POVO, junto dos pares negros, as concórdias e peripécias de ser quem se é. Não quem os demais o pretendem. “Quando aportamos ao Brasil, somos metralhados pelas diferenças”.

Primeiro de todas as categorias estranhas apalavradas: individualidade. Os Có compõem etnia africana cujos almoços são coletivos - conforme João, o costume povoa continente afora. Os queridos sentam à mesa e comem da mesma cabaça. “A educação é bem de todos. Eu vim estudar aqui. Quando meu tio tem condições, ajuda. A família se mobiliza”, sorri.

Segue o rol das peculiaridades e, em África, todo ancião morto é biblioteca queimada: “O velho tem papel muito importante em nossa sociedade - detém a sabedoria. É a voz da experiência, é o mais respeitado”. As escolhas, detalha, não são pensadas pelo indivíduo, todo mundo decide junto a maior parte do tempo. Quem casam são os noivos, mas o passo reflete mudanças a toda família.

Outras distinções vêm das comparações a posterior - pós-migração. O caminhado firme dos negros, por exemplo, costuma chamar a atenção - pelo menos são os comentários ouvidos pelos estudantes. E a língua. “Perto da universidade, conversava em criolo com amigos cabo verdianos. Operários do Metrô de Fortaleza ouviram e soltaram piada. Voltei para onde estavam e perguntei se ele achava bonito os sapatos que usava, as roupas que vestia. Não eram. Mas eu não tinha nada com isso. Se ele não gosto da maneira como falo, não preciso ser desrespeitado por isso”, desabafa o estudante em publicidade e propaganda vindo do Cabo Verde, Andy Monroy.

Também as roupas, as crenças, a bagagem musical, literária, experimental enriquecem o intercâmbio entre Brasil e nações africanas. Dentro do escopo, os preconceitos e estereótipos afastam as relações e trazem ignorância em lugar de troca. Mediante todo o novo oferecido, o pré-julgamento enxerga a si mesmo diante do espelho.

O adjetivo “africano” não diz muito. Se a pessoa veio do Cabo Verde, pode compartilhar pouco ou nada com os irmãos da Guiné Bissau - embora a história comum diga demais dos países. “Essa necessidade de que sejamos todos iguais, desprovidos de identidade, é muito comum. A África é o único lugar onde o negro é autóctone. Nos demais continentes, somos aqueles que vieram d’algum lugar. Isso, de alguma maneira, nos faz parecermos iguais entre si - para os outros, claro”, avalia João Paulo Có.

A superioridade suposta pelo império, ameniza as atrocidades comuns à colonização. Quando desembarca à terra alheia, o negro é visto como aquele a quem se deve colonizar, catequizar, civilizar. Então pouco afligem os rótulos, os apelidos e as privações identitárias.

O jornalista católico Francisco Vladmir da Silva, 29, integra a Pastoral do Imigrante e acolhe grupo com estudantes guineenses duas vezes ao mês. Os acolhidos foram enganados por faculdades brasileiras, como mostrou, ontem, O POVO. “É difícil acreditar como esses meninos têm os direitos roubados no Brasil”.

ENTENDA A NOTÍCIA

Enxergar o outro não é questão de abrir os olhos e olhar. Ver merece detenção e apuro, detalhes e experiências. Como encarar o estranho é a primeira colher de chá para compreendê-lo e respeitá-lo nas diferenças.

Resumo da série

1.260 pessoas originárias de um dos cinco países da língua portuguesa em África vivem no Ceará. Sentem por causa da pele o preconceito escravocrata brasileiro.

O estudante originário da África, se não aprovado em convênios com universidades públicas, acaba rendido às mensalidades das instituições privadas do ensino superior cearense. Acontece de, às vezes, os meninos cruzarem o oceano com informações erradas.

Confundido pelos brasileiros com os demais nascidos no continente africano, configuram povos diferentes e precisam reafirmar as identidades para si e para os outros povos globais.

Janaína Brás / O Povo
janainabras@opovo.com.br

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