sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Sobre o amor, com amor


Tiago R. Macedo 

Te amo. 
Mas o quê em ti eu amo? O que tu és para além da pele branca e lisa, da elegância do vestido, do sorriso adocicado? O sorriso é doce por tua doçura? ou tua doçura é efeito de teu sorriso, sardas e pequenos olhos cintilantes? 

No espelho, o que tu vês? Acaso sorrirás diversamente para outros? Então, quem és? O que há em ti de verdadeiro e em si, por trás da pele branca e das pequenas sardas, que seja inerente e invariante para qualquer um? Ou melhor, a despeito de qualquer um? Como tu és quando ninguém te olha? Como és aos olhos de Deus? Mas se Deus não há... meu deus!, que poderia ser além de um jogo multifacetado de espelhos, vertigem de aparências? 

E tu, como te vês? Enquanto estás comigo, por meus olhos? Acaso gostas tanto de meus olhos e, por isso, de mim e de minha companhia? Amor narcísico por dois belos lagos? 

E eu, que amo em ti? Teus braços macios, pescoço macio, colo macio, ventre macio? Corpo aveludado, acolchoado, pré-aquecido à 37ºC, liso, sensível, às vezes idealmente úmido, repleto de formas côncavas feitas especialmente para acolher um rosto, um corpo, um pênis? (desculpe a crueza, não devemos ser puritanos depois de ler Lawrence, devemos ser puros). Minha pequena almofada platônica, oásis no deserto do real, planejada para me acolher e a mim se fundir, fazendo-nos crer que o cosmos é um grande e aconchegante útero, morno e equalizado como apenas Jung e Paulo Coelho poderiam acreditar? Pequeno leito para um amor burguês? Canto narcótico de sereia para uma saúde gorda e sedentária, saúde de escravo, convalescente, debilitada, pequeno vírus semi-vivo, encapsulado, constantemente à espreita de um corpo morno em que possa se alojar, desfazer as malas, sentir-se em casa e declarar propriedade? 

Mas se perco o telhado, ganhando as estrelas, se volto às estepes, amando o vento frio que purifica a face, o peito e a alma, e se, olhando pra ti, ainda percebo te amar, o quê, em ti, amo? Os olhos, as sardas, os cachos? O nada que se esconde por detrás da profundidade da pele, dos cílios, do esmalte? Ou a imagem de pessoa que crio ligando os pontos que vão da mão à orelha, da orelha ao umbigo e do umbigo às coxas, como em almanaques infantis? Bela figura idêntica a si, fotografia comestível, escultura estática, beleza apolínea de mármore grego e macio. Mas então, se te mexes e com outros te desalinhas, que angústia que dá, ver minha miragem perdida! Reflexos de olhos, dentes e unhas se refletindo alhures em brilhos distintos, às vezes mais agudos, estridentes- de mau gosto, penso eu, mas é apenas minha saúde fraca que reclama, aflita. Aflita de se ver abraçando uma miragem, aflita de morte, de saber só haver miragens e água corrente e areia de dunas, tudo escapando entre os dedos, os próprios dedos se escapando de mim. É a vida que nos possui, nos pulveriza e mistura e implode e digere. 

Viver não é tarefa de capitalista, de proprietário, de firma reconhecida em cartório. Quantos subterfúgios para nos livrarmos da angústia da noite, do desdobramento, da falta de útero, do silêncio de Deus: o espaço, dizem, não reproduz som, apenas o simulacro de estrelas extintas, às vezes borradas por negros buracos- como se um demônio insatisfeito apagasse, com um só pequeno gesto da ponta do dedo indicador, milhões de galáxias, vida fosforescente, caldeirão exuberante de poeira estelar. 

Mas, minha linda amiga, o que amo em ti, além da beleza de teus brincos- e quase me constranjo de buscar um final feliz-, é também o nada por trás dos dois furos de teu semblante, o mistério de teus ossos, o fundo de tua garganta onde uma luz se extinguirá, a incógnita hamletiana por trás dos sorrisos e cachos e olhos, o nada que esconde e que comigo compartilha, tua solidão ontológica, tua língua portuguesa, a oportunidade que me dá de isto lhe escrever, o cuidado que me concede quando lês as palavras abandonadas por meus dedos, como quem segue as pistas deixadas por um animal perdido, as migalhas de um qualquer João ou uma qualquer Maria, o fio de Ariadne de um habitante do labirinto circular e sem saída de nossas vidas, cuja única certeza é o encontro derradeiro com as garras do minotauro - ou nem isso. 

O que amo, também, em ti, para além da beleza, é a transmutação da solidão em solidão compartilhada, fornecendo potência para traçar com mais coragem um caminho errante de nômade solitário. 

Te amo assim, paradoxalmente, meu vazio, minha amiga, minha mão estendida, minhas miragens reflexas de sorrisos, olhos e espelhos, tudo isso que se esconde sob o significante arbitrário de teu nome, último recurso para lhe agarrar, aprisionando teu fluir molecular de puro devir em uma imagem sonora: Alana.

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