sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Rousseau, a cultura e os novos prefeitos

Rousseau: "enquanto o poder estiver de um só lado,
as luzes e a sabedoria sozinhas do outro, os sábios
raramente pensarão grandes coisas"

Humberto Cunha
ESPECIAL PARA O POVO

Em 2012 se celebram os 300 anos de nascimento de Jean-Jacques Rousseau, filósofo cujos restos mortais estão no Pantheon, em Paris, como um dos gênios da França, mesmo tendo ele nascido em Genebra, território suíço. O seu pensamento percorre os discursos da política ocidental, a partir de conceitos como “vontade geral”, “bom selvagem”, “estado de natureza” e “contrato social”.

O gênio de Rousseau se manifestou por meio de peças teatrais, romances, poemas e ensaios políticos, sociológicos e culturais, além de discursos. A propósito destes, farei referência ao que conquistou o prêmio da Academia de Dijon, no ano de 1750, sobre a questão: “o restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para purificar os costumes?”

A referida obra não é para principiantes que, como eu, se assustam, quando a leem em primeira leitura, pois ela contém premissas terríveis para os que propagam as virtudes das artes e das ciências, pois para Rousseau elas “devem seu nascimento aos nossos vícios”, mencionado, por exemplo, que a retórica nasce a serviço da bajulação e a física da “vã curiosidade”. Por causa dessas origens malévolas elas – ciências e artes - seriam potenciais degradadoras da sobriedade e, por conseguinte, da própria subsistência do Estado.

Que palavras duras e incompreensíveis, sobretudo porque nascidas da pena de alguém visceralmente ligado às duas manifestações humanas por ele próprio hostilizadas! E, mais intrigante, premiadas pela academia, o habitat natural das ciências e das artes. Ele realmente disse o que lemos textualmente? Ou a genialidade do filósofo-peregrino, por meio de fina ironia, quis transmitir mensagem diferente ou até mesmo oposta ao sentido literal de suas palavras? Filio-me à segunda hipótese e passo a dizer a razão.

Rousseau viveu, por assim dizer, na antevéspera da Revolução Francesa, um tempo de promiscuidades tão intensas que não podiam gerar outro resultado, a não ser o grande ato de rebeldia que divide épocas. Sorel descreve o ambiente, de triste repetição tempos afora, no qual se vê “um [governante] sem vontade, ministros sem caráter e sem gênio, um governo em abandono, uma magistratura em conflito, administradores acovardados, oficiais indecisos, soldados indisciplinados, uma nobreza arraigada a seus privilégios e incapaz de justificá-los, uma burguesia ambiciosa que assalta o poder a fim de conquistá-lo, a turbulência nas cidades, a ansiedade dos campos, miséria por toda parte...”

Apesar de todo este caos, as classes dominantes, surdas aos primeiros gritos por igualdade, insistiam em manter privilégios e se diferenciar; e dentre os mecanismos de distinção estava a proximidade “oca” com as artes, assim entendida porque no lugar de serem usadas para ampliar os horizontes da reflexão e dos sentimentos humanos, se prestavam a propósitos contrários. É o que pensa Rousseau, antecipando uma reflexão que, bem no futuro, será sistematizada pela Escola de Frankfurt, em torno de conceitos como cultura de massa e indústria cultural. Na metade do século XVIII, o genebrino desde então já percebe que “reina nos costumes uma vil e enganadora uniformidade, parecendo que todos os espíritos foram atirados num mesmo molde”.

A um só tempo enigmática e confortadora é a conclusão que Rousseau dá ao seu discurso, entendendo que “enquanto o poder estiver de um só lado, as luzes e a sabedoria sozinhas do outro, os sábios raramente pensarão grandes coisas, os príncipes mais raramente farão belas, e os povos continuarão a ser vis, corruptos, e infelizes”.

O enigma é o que salva o pensador de terrível contradição, pois durante todo o discurso a proximidade entre poder e cultura é, como visto, evidenciada como nefasta. Que aproximação maior agora ele quer? A resposta não é explícita, mas apenas dedutível; ela possui o condão de sanar o defeito e de prescrever a fórmula ideal para a relação: somente a cultura autonomamente produzida é capaz de contribuir com o progresso substancial do Estado, este que deve ser instrumento a serviço do engrandecimento humano.

Como se vê, 300 anos depois, importantes lições continuam a ser retiradas do discurso de Rousseau; uma delas poderia ser, a propósito deste mês da cultura, direcionada aos prefeitos de todos os municípios do Brasil, recentemente eleitos e que geralmente têm grandes dificuldades no planejamento e na execução das políticas culturais, as quais, quando existem, com muita frequência repetem o erro denunciado pelo filósofo: são confundidas com meras atividades massificadas de entretenimento do tipo anestésico e de passatempo, mesmo que sob enganosas aproximações com objetos e pessoas consagradas ou justificativas que falseiam as ideias de democratização, universalização e acesso.

Uma política cultural somente será digna deste nome se, por contraditório que aparente, ao mesmo tempo agradar e inquietar; se cada pessoa e cada coletividade perceber nas manifestações culturais uma fatia de sua alma, na forma como é, bem como poderia e deveria ser. Enfim, parafraseando, uma política cultural terá valor se ajudar revelar os selvagens que somos (bons e/ou maus), bem como der suporte à formação cidadã, aquela que dá autonomia ao indivíduo, sem enfraquecimento da coletividade, ou como diria Rousseau, respeitando a vontade geral.

Humberto Cunha é doutor em direito, professor da Universidade de Fortaleza e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais

Fonte:
http://www.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte/2012/11/14/noticiasjornalvidaearte,2953663/rousseau-a-cultura-e-os-novos-prefeitos.shtml

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