domingo, 29 de junho de 2014

O nosso tatu-bola


Serra das Almas, Crateús. Um tatu-bola corre pela mata, foge dos caçadores. Para se defender, se recurva todo até formar uma bola, vira uma armadura perfeita. Se o predador fosse um animal, ele estaria seguro. Nem uma onça consegue abrir a carapaça. Mas o caçador é bicho-homem e só precisa se abaixar para pegar a bolinha de casco duro, verdadeiro cofre. Um homem forte não consegue abrir a armadura, mas basta um pouco de paciência, o bichinho se abre, e acabou-se o segredo. Até uma criança é capaz de caçar um tatu-bola. A carne é saborosa, cozida ou frita na manteiga, os ossos servem de ferramentas, a carapaça é enfeite, troféu e cuia, ou brinquedo de menino. Também o tatu-bola padece das queimadas, da devastação das matas, e assim esse fascinante animal vai desaparecendo.

Ele existe há uns sessenta milhões de anos e é o único sobrevivente dos animais com armaduras móveis. Vive nas Américas, nas terras áridas, savanas, florestas de arbustos espinhosos, no cerrado e na caatinga. É nosso. Uma gracinha de bicho, a carapaça é fabulosa, por dentro as patinhas ficam entre cabelos lisos quase brancos. É solitário, mamífero, come insetos, formigas, cupins, vegetais, raízes, come até areia, e possui hábitos noturnos.

Tem simbolizado as Américas desde uma gravura do século 16, feita por um pintor holandês, em que uma índia guerreira aparece montando um gigantesco tatu - que existe, mesmo, é o tatu-açu. Desde então é visto em gravuras, tapeçarias, desenhos, feitos pelos conquistadores. Há uma famosa descrição do tatu-apara feita pelo naturalista alemão, Marcgraf, no século 17, em que notamos uma espécie de afeto por parte do observador. Deve ter se encantado com o maquinário tão engenhoso dessa natureza. E ele conta que o tatu-apara tinha também propriedades medicinais: o pó da cartilagem e os ossinhos da cauda serviam para as doenças do amor, para zunido nos ouvidos, para a surdez; o pó da cauda era diurético; o pó da cartilagem cozido servia, em forma de massa, para extrair espinhos da nossa pele. Minha vizinha alemã me convidou para um jantar em sua casa, e na ocasião me deu um livro que ela mesma editou: Futebol com tatu-bola. Ela fez ali uma encantadora pesquisa sobre o bicho de estimação sertanejo. Para introduzir informações sobre futebol.

Todos sabemos, esse animal, com um destino quase irônico, dramático, e um comportamento cheio de significados – tantas vezes nos armamos, nos fechamos em armaduras, mas continuamos vulneráveis – foi escolhido como mascote dos jogos do Mundial de futebol, este ano de 2014, com o nome de Fuleco, misto de futebol e ecologia. Parece mesmo o que acontece nos jogos: treinam suas armações, suas defesas, mas estão sempre vulneráveis. A proposta da mascote partiu da Associação Caatinga, que aproveitou muito bem a oportunidade para lutar pela sobrevivência desse animalzinho, tão conhecido dos brasileiros, das crianças, mas não do mundo. Tomara que dê certo.

Ser mascote de algo tão internacional como um campeonato de futebol é uma oportunidade ímpar. Quem se lembra das mascotes das Copas passadas? Desde os anos sessenta a Copa tem uma mascote. Está no livro da vizinha alemã: um leão com a bandeira inglesa; Juanito, um menino com sombreiro; dois meninos germânicos, Tip e Tap; o Gauchito, personagem dos Pampas; uma laranja vestida com a camisa da seleção da Espanha; uma pimenta com bigode e o mesmo sombreiro; o bonequinho Ciao; um cachorro, o animal fiel e universal; um galo, que anuncia cantando a chegada da manhã; umas criaturas futuristas e imaginárias; um leão com uma bola falante; e Zakumi, um leopardo amarelo com cabelo verde. Nada tão fascinante, tão adequado, quanto um tatu-bola. Não nos faltam motivos e símbolos. Nossa mascote poderia ter sido o renomado papagaio, a belíssima e colorida arara, até mesmo uma árvore espinhosa como o pau-brasil, que nos deu o belo nome ao nosso país, ou a ave tão canora e sedutora, o sabiá. Mas nada seria tão perfeito como um animal que se transforma numa bola. Ideia genial, como o ovo de Colombo.

Responda quem souber: Por que, até agora, nem um centavo apareceu para a preservação do tatu-bola ou da Caatinga? Não houve nenhum discurso ambiental, não se fala no risco de extinção do bicho, e “muitos nem sabem que o Fuleco é um tatu”, diz Rodrigo Castro, que dirige a Associação Caatinga. “A Fifa autoriza empresas a vender produtos com Fuleco, inclusive um milhão de pelúcias [fabricadas na China], mas nenhuma parte desse dinheiro vai para a proteção da espécie”.

ANA MIRANDA
dom@opovo.com.br
(Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/anamiranda/2014/06/28/noticiasanamiranda,3274081/o-nosso-tatu-bola.shtml)

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