domingo, 9 de janeiro de 2011

E a cultura na França...



Cultura, na França, é quase sinônimo de Estado: não há uma área cultural no país — do teatro aos museus, cinema e literatura — na qual o governo não esteja presente, distribuindo subvenções. Certo, a cultura francesa é mundialmente conhecida, seus museus e o cinema, sobretudo. Mas é este o único modelo possível?

Os próprios franceses, quando confrontados a comparações com o modelo anglo-saxão — anti-estatista e radicalmente liberal — fazem esta pergunta. Num debate em abril passado na rede de televisão France 24, espécie de CNN francesa, a pergunta era: a quase onipresença do Estado na cultura fez aumentar a influência ou a difusão da cultura francesa no mundo?

Preço fixo para livros e subsídio ao cinema nacional

Os três convidados não responderam claramente. Mas concordaram num ponto: a presença do Estado impediu a morte do cinema francês, como ocorreu, em parte, com o cinema italiano. Apesar disso, cineastas franceses admitem que suas obras são cada vez menos exportadas, mesmo para países francófonos.

O governo francês defende sua cultura com unhas e dentes, apoiando-se num conceito de “exceção cultural”, que, em outras palavras, quer dizer: a França tem uma especificidade cultural que os outros não têm, e que precisa ser defendida e protegida. O termo hoje foi substituído por um conceito mais amplo: diversidade cultural.

O resultado disso é um sistema de ajuda automática do Estado às áreas de cultura. Por exemplo: 11% do preço de cada ingresso de filme difundido no país — sejam ele francês ou não — são coletados pelo Centro Nacional de Cinema, que repassa o dinheiro para criadores e distribuidores de filmes franceses. Em outras palavras, filmes estrangeiros acabam também contribuindo para subsidiar a cultura francesa.

No caso da literatura, a proteção não vai apenas para os escritores, mas para os que divulgam suas obras. A França criou uma lei que estabelece um preço único para o livro, para evitar que as livrarias independentes sejam massacradas pela concorrência dos gigantes da distribuição. Jack Lang, ex-ministro da área, costumava dizer que cultura “não é uma simples mercadoria”. Para ele, sem a lei do preço único “não haveria nem liberdade de escrever, nem de editar”.

Em 1993, a França comprou uma enorme briga com os americanos na Organização Mundial de Comércio. Tratava-se de evitar que produtos culturais tivessem que se submeter às mesmas regras de livre comércio que um produto industrial qualquer. Os franceses ganharam a batalha. Para defender sua cultura, a França não mede esforços. As rádios são obrigadas a dedicar 40% de sua programação musical às músicas francesas ou de língua francesa. A indústria cinematográfica produz 200 filmes por ano.

O modelo é criticado pelos anglo-saxões. Em 2007, o jornalista americano Donald Morrison, da revista “Time”, provocou uma enorme polêmica na França ao decretar, no título de seu artigo, “a morte da cultura francesa”. Para ele, o Estado sufoca a criação. Vários intelectuais partiram em defesa do modelo. Um ano depois, a França comemorava sua revanche com a notícia de que J.M.G Le Clézio ganhou o Prêmio Nobel da Literatura. Morrison explicou que o título do artigo era uma provocação para chamar atenção para o fato de que as grandes criações ocidentais não são mais produzidas pela França.

— Meu artigo tratava mais do recuo da cultura francesa e partia da constatação de que o essencial da criatividade ocidental está acontecendo há anos em outros lugares, em particular, em Londres, Nova York e Berlim — disse o americano, num debate no jornal conservador “Le Figaro”, em outubro de 2008.

Ele citou como exemplo romancistas franceses que escrevem “para eles mesmos” e “não descrevem mais o mundo”, como os grandes autores franceses do passado. Em consequência, suas obras acabam sendo pouco traduzidas no estrangeiro. E concluiu que por conta da superproteção e das subvenções do estado, a cultura francesa “parece ter renunciado a se dirigir ao mundo”.

Já Caroline Fourest, cronista do jornal “Le Monde”, sustentou no debate da televisão France 24 que a presença do Estado não impediu a participação da iniciativa privada. Ao contrário, estas duas forças juntas possibilitaram uma “enorme diversidade” cultural no país. Caroline disse ainda que o grande cinema italiano morreu porque o Estado deixou de apoiar a área.

— Ao que sei, muitos americanos estão felizes de vir para a França desfrutar desta diversidade cultural, o que quer dizer que (nosso modelo) funciona — observou ela.

Como lembrou Olivier Poivre d’Avor, atual diretor do France Culture, ainda no debate promovido pelo “Le Figaro”, três quartos dos turistas vão à França para consumir a cultura. A lei que criou o preço único do livro, segundo ele, é “uma formidável invenção francesa”.

— Uma livraria francesa pode ter até 100 mil títulos e você acha autores americanos, franceses, de Madagascar, do Chade. Quando vou a uma livraria americana padrão, não encontro esta diversidade. Vão me propor uma escolha de 20 mil livros e 50 filmes que pretendem resumir o mundo. Ora, o mundo não é para ser resumido. É isso que os americanos não entendem — disse Poivre d’Avor ao “Le Figaro”.

Modelo francês é criticado por anglo-saxões

No debate do canal France 24, a americana Ruth Kirstein, atriz e diretora de teatro, fez a crítica recorrente no mundo anglo-saxão em relação aos franceses: por conta das subvenções, disse ela, “há muito de tudo” na produção francesa, inclusive de qualidade duvidosa.

— Há muita coisa com qualidade não confirmada. Mérito tem que ser um critério (da subvenção) — diz a atriz, que só fez exceção em relação à boa qualidade do cinema francês, que ela atribui ao olhar exigente do público.

Para Kirstein, o Estado acaba “determinando o que deve ser considerado como arte”.

A cronista do “Le Monde”, Caroline Fourest, discordou:

— A cultura na França é tão diversificada que não temos o sentimento de ter o Estado por trás. Temos o sentimento de ter uma escolha imensa em várias áreas artísticas.

A cultura é estrategicamente tão importante no país que numa época de crise e corte de gastos não apenas na França, como no resto da Europa, o ministério da Cultura garantiu para 2011 um aumento de 2,1% em relação ao orçamento do ano passado, o que dará um total de 7,5 bilhões.

— Enquanto a maior parte dos países europeus escolheu cortar seus orçamentos, a França fez uma escolha diferente — disse Frédéric Mitterrand, ministro da Cultura. — A oferta cultural é um elemento determinante da nossa atratividade e do nosso desenvolvimento econômico.

Fonte: http://migre.me/3vHld

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