quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

O inferno do relacionamento


Ivan Martins

Tenho um amigo que gosta muito de ler. Ou melhor, ele gosta muitíssimo de ler, e gosta ainda mais de comprar livros, muitos dos quais ele manda vir do exterior. Comparado com outros, o vício dele é tão benigno que pode ser considerado uma virtude. Mas sua mulher não concorda com isso. Ela acha, com alguma razão, que ele gasta demais com leitura. O assunto virou motivo de brigas do casal. Para evitá-las, meu amigo fez um trato com o carteiro: ele entrega na casa as correspondências normais, mas deixa os livros na agência do Correio. Meu amigo os apanha lá e contrabandeia na bolsa para dentro de casa, sem que a mulher perceba. A biblioteca dele é, aparentemente, a única do mundo que cresce de forma vegetativa.

Visto do ponto de vista desta história singela, quase cômica, o casamento revela-se uma instituição infernal.

Num momento, há uma mulher encantada com a cultura, a inteligência e a falante erudição do namorado. O fato que ele leia abundantemente, até exageradamente, reforça a impressão de singularidade do sujeito, torna-o ainda mais interessante. Passam-se os anos, dividem-se a renda, o patrimônio e as peças de roupa na máquina de levar e, pronto, opera-se o inverso de um milagre – o intelectual torna-se, um perdulário, uma ameaça à renda familiar, um irresponsável que se vê obrigado, em nome da paz doméstica, a traficar literatura clandestina para dentro de casa, como se fosse maconha ou cocaína.

Como chegamos a isso, senhoras e senhores?

Eu não faço a menor ideia, mas sei que acontece. Quando você conhece uma pessoa atraente, você a quer como ela é. O salto lá em cima, o decote lá embaixo e aquele jeitinho de falar a três milímetros de distância, o seu nariz quase roçando o narizinho vermelho de vodca. Aí você se envolve com a criatura e tudo vira um pesadelo. As roupas, a intimidade imediata com estranhos, o hábito de beber e a insistência – a maldita insistência – de ficar na festa até o fim, quando as coisas realmente acontecem. Mas você já não quer que aconteça mais nada, certo?

Talvez por isso as pessoas estejam com preguiça dos relacionamentos.

Tenho uma amiga que anda saindo com um rapaz já faz algumas semanas, talvez mais de mês. Toda vez que eu telefono ela está com ele. Quando conversa comigo, fala sobre ele. Saem toda hora, imagino que durmam juntos vários dias por semana. Planejam viagens. Eu perguntei ontem se estavam namorando e a resposta veio límpida: NÃO! Minha amiga parece querer evitar a maldição das palavras. Se disser que está namorando, talvez tudo mude, para pior. Então ela apenas “sai” com ele, e assim continua vivendo da maneira como gosta. Com ele.

Eu não sei se acredito nessas coisas.

Talvez eu seja conservador, mas acho que a cultura humana tende ao compromisso - mesmo no século 21, mesmo neste bordel moralista que é o Brasil. Quando duas pessoas se gostam elas acabam gravitando em torno uma da outra e a gravidade é uma forma sutil de ordenamento e prisão, como descobriu Isaac Newton. Eu não posso flutuar até a Lua, tanto quanto a maioria de nós não pode evitar sentir-se ligada ao outro de quem está próximo. Sente-se falta. Deseja-se atenção. Eu pergunto à minha amiga o que acontece quando ela liga para “o caso” dela e ele não deseja vê-la ou está com outra pessoa. “Não é assim”, diz ela, meio indignada. Então como é? A liberdade existe ou é apenas um namoro convencional com outro nome?

Outro dia eu participei de um programa de televisão com a Marília Gabriela – uma simpatia pessoalmente, engraçadíssima – e ela, daquele jeito exagerado, constatava que a gente continua interessado sempre nas mesmas questões sobre sexo, como se o tempo não tivesse passado e o mundo não tivesse mudado tanto. São sempre as mesmas perguntas, ainda que as respostas estejam mudando devagarinho.

Pois eu acho que vale o mesmo para os relacionamentos. Nós continuamos obcecados por questões aparentemente insolúveis como monogamia, controle, graus de exclusividade, ciúme, privacidade, autonomia e solidão. Elas não foram e não parecem estar a caminho de serem resolvidas. O problema central é que a gente parece incapaz de satisfazer nossas necessidades afetivas sem renunciar a alguma coisa que depois nos fará falta. Essa contradição (se é que se trata de uma contradição) permanece insolúvel.

Nós mudamos o nome dos relacionamentos e até abrimos mão deles, mas não conseguimos alterar sua natureza profunda, que ainda é totalitária. Quem tem mais autoridade e mais poder sobre nós do que a pessoa com quem nos relacionamos? Quem tem mais capacidade de nos causar dor?

Simone de Beauvoir e Jean Paul Sartre foram mais longe na década de 30 do século passado na reinvenção do relacionamento (sem resolver suas contradições emocionais, registre-se) do que a maioria de nós conseguirá até 2030.

Logo, concluo que o meu amigo vai continuar contrabandeando livros para dentro da sua própria casa, que minha amiga vai seguir namorando sem usar o nome e que outras pessoas evitarão envolver-se, para preservar seu desejo e a sua autonomia. Eu, além de sofrer de todas essas coisas, vou continuar, inutilmente, tentando entender o que nos aflige.

Fonte: Época

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