sábado, 2 de fevereiro de 2013

O presumível coração da américa


Nélida Piñon

A memória da mulher encontra-se na Bíblia. Ainda que não tivesse sido ela interlocutora de Deus. Esta memória encontra-se igualmente nos livros que não escreveu. Uma memória que os narradores usurparam enquanto vedavam à mulher o registro poético de sua experiência.

Ao se fazerem eles, porém, desta memória intérpretes únicos, fatalmente nutriram-se da malha de intrigas, dos diálogos amorosos, das confissões feitas no leito de morte, da preciosa matéria enfim guardada no coração feminino. Em algum lugar desta mulher, e unicamente ali, alojaram-se para sempre os espinhos das intermináveis peregrinações humanas sobre a terra, sem os quais nenhuma obra de arte teria sido escrita. Portanto a mulher bem pode proclamar, em nome do legado que cedeu à humanidade, ser ela também a outra cara de Homero, de Shakespeare, de Cervantes.

Guardiã eterna dos sentimentos oriundos dos homens e dos deuses, a mulher conservou no aqueduto de sua singular memória a fulgurante e dramática história universal. Preservou os vestígios de uma memória ancestral que, somada ao seu próprio foco narrativo, a induziram a exercer, no passado, o seu ofício de olheira. A praticar, em meio a tantas afrontas, a rebelião que constituía tão somente em fazer aflorar a cada dia sua memória recalcitrante, preterida sempre pela memória eloquente e arbitrária do homem.

E enquanto os séculos a envelheciam, a mulher zelava por reproduzir os ditames da sua visão particular da realidade. E, quando convocada a esquecer o que sabia, aleitava a memória com mel e pão ázimo. Fortalecia o peito com porções de suas íntimas revelações, para nada lhe faltar no futuro, quando começasse a narrar. Contudo, sem exercer o direito ainda de dar pauta escrita à sua arqueologia, à misericórdia do seu constrangimento social, adestrou-se ela no jogo do mistério e da dissimulação, para melhor enriquecer o arsenal das lembranças. Fazia brotar do plexus os frutos e as serpentes da memória. A cada manhã reproduzia, para si mesma, e com intensa volúpia, o que perdurava sob o abrigo de seu soterrado acervo. A história lacrada no interior do seu espírito.

Na aparência, ela atuava em obediência aos acordes dissonantes da memória do seu povo, aos substratos fomentados pela sua grei. Tímida, ia ao encalço das brechas da história. Sempre lhe restando o desconsolo de ironizar uma civilização que, ao longo dos séculos, interpretou a realidade prescindindo da memória e dos sonhos da mulher.
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